«Em casa não tinha um livro, mas uma avó chamada Maria»

A literatura entrou na vida de Tolentino Mendonça em criança e começou por ser «contada» através da «avó Maria» e de uma analfabeta que «lavava o chão numa igreja de Machico».

A sala de espetáculos do Teatro Municipal Baltazar Dias encheu-se para receber José Tolentino Mendonça e Valter Hugo Mãe para juntos fazerem uma “Viagem Literária”. Numa retrospetiva feita no tempo, o escritor José Tolentino Mendonça, que nasceu na Madeira, disse que «em casa não tinha um livro, mas tinha uma avó». A literatura entrou na sua vida em criança e começou por ser «contada» através da «avó Maria» que, na altura, era a sua «biblioteca». A chamada «literatura oral» que deixou marcas na sua vida até hoje.

«Uma das obras mais belas que se editou na Madeira foi o Cancioneiro Oral que é de uma riqueza imensa. E o que é que se descobriu? Que aqueles velhos de 70, 80 e 90 anos tinham na cabeça bocados de livros… e começar a ler pela literatura oral é uma coisa espantosa», referiu.

É por isso que, no seu entender, este género de literatura difere-se da literatura escrita, porque quando uma pessoa lê um livro existe uma »fronteira entre a verdade e a ficção». O leitor até pode «entrar» dentro da obra, mas quando fecha-a só volta a reencontrar-se com ela na altura em que reabre-a. Há uma «separação física». «Antes de tudo a literatura é uma experiência», sustentou.

Outra das experiências marcantes da sua vida foi a primeira vez que ouviu “O Cântico dos Cânticos” «através de uma mulher analfabeta que lavava o chão numa igreja de Machico».

«Ela sabia partes do Cântico dos Cânticos e disse aquilo ao miúdo que andava pela igreja que me fez parar. Eu acho que na minha vida há um antes e um depois: antes e depois de ter ouvido aquilo, porque foi como ter espreitado pelo buraco de uma fechadura. Até então, nunca tinha sentido que as palavras podiam emocionar daquela maneira. lembro-me da emoção que senti, de ter voltado lá várias vezes e pedir-lhe para dizer novamente aquilo. Anos depois descobri que  aquele poema era bíblico», recordou, sendo que muitas vezes aplaudido pelo público que ficou tocado pelas suas palavras, sobretudo quando elogiou os valores e a mensagem de esperança que os seus pais lhe passaram desde a tenra idade.

De «SANTO A ESCRITOR»

Ouvindo atentamente as suas palavras, Valter Hugo Mãe, natural de Angola, que em jeito de brincadeira afirmou que se sentia »atrapalhado» por estar ao lado de José Tolentino Mendonça, contou algumas das suas peripécias antes de ser escritor.

O artista, que é um amante acérrimo da poesia, revelou que é capaz de escrever em todo o lado, até mesmo quando está a decorrer um concerto. E, muitas vezes, usa o Iphone para fazê-lo. «As pessoas pensam que estou a namorar e ninguém me incomoda, o mesmo já não acontece quando estou com um bloco de notas e uma caneta bonita, onde todos querem saber o que estou a escrever, acabando por desconcentrar-me», brincou, provocando a risada geral.

Pela primeira vez na Madeira, a “Viagem Literária”, da Porto Editora, foi “conduzida” pelo jornalista João Paulo Sacadura, que criou uma empatia com os escritores e o público numa conversa cheia de humor, que levou muitos a sorrir, a rir à gargalhada e… a bater palmas.

Jornal da Madeira -24-1-2016