“É o nosso Shakespeare”

“Mandamos sondas a Marte, já fomos à Lua, fazemos viagens espaciais, mas em termos da humanidade e do nosso estar social temos evoluído muito lentamente.”, constata Gisela Cañamero justificando assim a actualidade da obra de Gil Vicente, um autor obrigatório para qualquer encenador português.Colocar Gil Vicente em cena é também importante porque mostra os linguajares, a oralidade, do século XVI, muitos deles ainda presentes no dizer contemporâneo, incluindo em alguns regionalismos que tem visto na Madeira.

“É o nosso Shakespeare”, compara a encenadora, na Madeira a convite da companhia Contigo Teatro para levar à cena “Agravados”. Depois da estreia no sábado no MUDAS. Museu de Arte Contemporânea da Madeira, onde esteve até segunda-feira, o espectáculo de teatro chegou ontem ao Funchal para quatro dias no Teatro Baltazar Dias.

“É uma escrita de imensa qualidade, escrita em verso, com um sentido rítmico e melódico da língua portuguesa muito profundo, e que se consegue ouvir, que é  uma delícia. É uma delícia ouvir esta literatura, seja rela retirada da arte popular, seja ela mais erudita, dita neste caso através do corpo e da voz dos actores.”

Hoje há sessões para escolas, já completamente esgotadas. E se houvesse possibilidade, esgotariam outras duas pelo menos. As sessões para alunos no MUDAS estiveram completamente preenchidas também. “Infelizmente, por questões que se prendem com a programação do próprio Teatro, só podemos ter duas sessões para as escolas”. O conselho é os que possam assistam às sessões para o público em geral, hoje e amanhã às 21h30 e no domingo às 18 horas.

No século XVI a sociedade portuguesa está muito estratificada, as classes sociais muito definidas. Gil Vicente torna-se a voz daqueles que não têm voz, e com um desassombro enorme, diz a encenadora, destacando ainda o ter sabido “tão bem retractar as personagens que nos mostra à lupa”. “Digamos que isto foi possível porque a inquisição só chega no ano em que Gil Vicente morre, porque, se não, não seria possível.”

E é a partir das vozes destes que nasce este trabalho. Juntou e coseu com mestria os autos “Comédia de Rubena”, “Auto de Mofina Mendes”, “Auto da Feira”, “Quem tem Farelos?” e “Romagem de Agravados”. Foi um grande desafio, assumiu a Gisela Cañamero. O desafio começou em julho, durou até Agosto. Foram dois meses de dramaturgia, dois meses intensos para criar o texto para “Agravados”. “Não se faz uma dramaturgia do pé para a mão sem se conhecer bem a obra”. A compilação de todas as obras de Gil Vicente é uma das que recorre frequentemente. Não é um livro de cabeceira, mas é quase, diz. “É preciso ter uma familiaridade com estes textos que nos permita andar aqui juntar, a cortar, a juntar autos etc.,sem que isso violente a obra do autor”.

“A Farsa de Inês Pereira” e o “Auto da Barca do Inferno”, são os que constam do programa de estudos nas escolas. Nenhum destes faz parte do texto. “O “Auto da Barca do Inferno” não consta porque sai muito fora destes personagens e da estrutura dos próprios autos”, explicou. “”A Farsa de Inês Pereira” porque não me deu para ir buscar esse texto”.

Foi a primeira vez que trabalhou com a companhia Contigo Teatro. Tinha cá estado há dois anos, mas para dinamizar uma oficina no Encontro  Literário Ler Com Amor. Confessa que ficou rendida com o compromisso do conjunto de pessoas, actores a tempo parcial, e a preocupação de intervir na comunidade educativa, com uma missão pedagógica.

Gisela Cañamero encontrou uma Madeira diferente quando cá esteve há dois anos. Já tinha cá estado no final da década de 70. “Houve um grande trabalho, muita coisa mudou, houve um trabalho de intervenção social muito grande, é sobretudo a isso que me refiro. Apraz-me muito registar isso porque, de facto, era algo confrangedor, para quem colocava os pés na ilha, o que se passava”.

Uma nova colaboração com a companhia está em vista. Antes disso, a encenadora e o grupo formado por Ana Olim, António Garcês, António Neto, Celina Pereira, Cristina Ferreira, Fernanda Gama, Luís Varela, Maria José Costa, Pedro Santos, Rui Barata e Sandro Nóbrega convidam a descobrir ou redescobrir a obra de Gil Vicente. Os bilhetes custam 10 euros para o público em geral. Há descontos previstos.

Diário de Notícias – 25 de Novembro de 2016